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PIANOS, GUITARRAS E A COISA DA MODA

18 de Janeiro de 2020 | Artigo Msica Pianos Guitarra Coisa da Moda

Germano Rabello

Em 1989, num dos capítulos iniciais do Sandman de Neil Gaiman, é brevemente citada uma personagem periférico do reino do sonho. A Coisa da Moda. Ela é mencionada brevemente e jamais foi mencionada depois. Tinha sido mod, punk, tinha sido “Bruxa Madonna louca”, é mencionada em uma página só, um quadrinho só dentro dessa página. Mas eu nunca esqueci da Coisa da Moda. Tudo que há na música e no mundo cultural é sempre a ação da imprevisível dela. Mesmo que através da negação.

Circulou na minha timeline um texto de Ruy Castro sobre a decadência econômica das fábricas de guitarra. O texto provoca reflexões interessantes. A primeira delas é que efetivamente, as guitarras ocuparam muito espaço na música. Mas jamais vou concordar com todas as premissas maniqueístas do texto e sobretudo com o infame título sobre a “ditadura musical”.

As guitarras “roubaram” o espaço de alguns instrumentos? A resposta é sim. Talvez tenham gerado uma uniformização, padronização, pasteurização da música e enfraquecido outros ritmos, já que estão primordialmente ligadas à ritmos americanos? A resposta é sim. Mas o inverso é também verdadeiro, ajudaram um monte de gente a soltar a criatividade e a fazer música maravilhosa. 

Minha ressalva é contra o discurso da pureza. Pra gente não voltar, ainda que apenas mentalmente, à passeata contra o uso da guitarra elétrica, que aconteceu em 1967, São Paulo. Nessa passeata chegaram a participar Jair Rodrigues, Elis Regina, entre outros nomes.

Tudo que escuto de música brasileira, dos anos 50 em diante, basicamente tem a fortíssima influência do rock, do jazz, de ritmos vindos de fora. Nem tem como negar isso. Talvez até seja ingênuo pensar que isso começou nos anos 50, mas a verdade é que antes disso a abertura era bem maior para os ritmos latinos, boleros, etc. Isso é parte do processo cultural – e sim, também de um processo político, hegemônico, de poder.

Vale lembrar que isso acontece hoje, da mesma forma que a música ligada ao hip hop e ao funk, com discursos de empoderamento segue diretrizes estabelecidas nos EUA. Seguimos timbres, padrões, estruturas, mixagens, Rihanna, Frank Ocean.

Quando Ruy Castro, menciona o declínio das fábricas de piano, e também a ascensão da música feita em computador e celulares, ele chega ao cerne da questão. Mas talvez sem perceber que chegou lá.

Porque a questão envolve também praticidade e questões econômicas – um produto acessível para os bolsos dos músicos. Um piano é grande e tem dificuldades de acomodação, locomoção. É caro. A guitarra veio como um antídoto – desenvolvido no blues, jazz (neste último, maioria das vezes como elemento secundário). Outro nível de praticidade. O som se propagou, a economia permitiu que ela se estabelecesse. E agora a gente vem produzir música em formatos físicos menores, através de programações, de samples, de pequenos aparelhos eletrônicos. Tornou-se mais viável, mais sedutor, mais urgente.

A Coisa da Moda tá sempre aí. Estamos no meio de um monte de processos históricos que se entrecruzam, dialogam, convivem. Demandas sociais, acasos, tendências. Há as correntes principais (o tal mainstream). E as correntes secundárias, as soluções alternativas, os guetos, as pessoas fora de moda. Os músicos à frente do seu tempo. Ou seria atrás do seu tempo?

Às vezes a gente espera da história uma linearidade que ela não tem. O que em um momento foi tido como antiquado, digamos, tocar rabeca, pode ressurgir aqui e ali como uma tendência inovadora. O que foi tido como avançado se torna obsoleto e nós começamos a detestá-lo. A Coisa da Moda em ação. E aquele velho hábito tribal de devorar o rei decadente. Correntes esquecidas do passado alimentam a estética do futuro. Tudo volta.

Há uma corrente de ansiedade e energia frenética, o começo da era dos super-estímulos eletrônicos, sobretudo na segunda metade do século XX. Essa frequência energética – que surgiu espontaneamente das mudanças, ao mesmo tempo que foi criada e cultivada por nós? – precisaria ser traduzida em música. Precisaria da estranheza de certos compositores modernistas, Xenakis, Stravinsky, precisaria da vitalidade de Chuck Berry, ou da escola do Velvet/ Stooges de barulho. Para ser traduzida e reconhecida. A gente precisou dessa liberação de energia de um certo modelo de racionalismo então vigente.

Ao mesmo tempo, pode-se passar ao largo de todas essas escolas e privilegiar outras.

Existem mil outros fluxos esperando reconhecimento. Trânsitos astrológicos nos levando de volta a eles. Tem Gilberto Gil fazendo sua maravilhosa música africana brasileira no disco Refavela, de 1977. Ele que participou da passeata contra a guitarra elétrica (segundo ele, só porque estava apaixonado por Elis). E depois usou a guitarra pra tanta coisa linda, quando quis, de forma livre. Bebeu nas fontes e não deixa de reverenciar. Incluindo o Chuck Bery Fields Forever.

Um dos Animal Collective (banda norte-americana) escreveu uma provocação pra elogiar o Sidi Touré (músico do Mali): “Nunca houve uma época melhor do que essa para não ouvir os Rolling Stones”. Frase totalmente correta, mas não precisa ser uma regra. Nunca tivemos tanto acesso a tanta coisa diferente. Torna-se desnecessário seguir o panteão dos hoje antigos deuses do rock. Mas se quiser vai lá, é bom também.

Sim, curto Beatles, Stones, Zepellin. Vejo no entanto a situação estacionária e pouco imaginativa/evolutiva que impera na árvore musical que outrora deu esses frutos. Continua existindo o que se chama de rockismo, uma perspectiva distorcida que bota o panteão do rock acima de todos os outros estilos e que julga tudo a partir dos critérios que o rock estabeleceu. Cada vez mais dinossáurica essa visão. Estou desinteressado disso há um bom tempo. Meu guitar hero é o Aldo Sena.

A descontrução do rock e das guitarras, se você parar para pensar, se inicia imediatamente com os anos 1970, ou talvez mesmo antes. Porque na verdade, em dado momento, nada mais era puro, as pessoas começaram a se afastar disso pelo menos desde os primeiros discos do Brian Eno, de Joni Mitchell, de Serge Gainsbourg... Porque começou a se formar então uma egrégora semelhante à que temos hoje, de uma vigorosa circulação de informação. Tinham atingido alcançado um ponto de ebulição, de fartura, de clareza e acesso à informação musical. Juntava-se isso a uma juventude sedenta e inquieta, e os estilos começaram a se bifurcar de forma exponencial.

Por isso tanta coisa que circulava dentro de um circuito do rock – a egrégora predominante - na verdade já estava um bocadinho além. Já era eletrônica, era ambient, era metal, era krautrock, progressivo. Ou tinha virado reggae. Não existe pureza nesse estilo. Os rótulos parecem muito arbitrários quando você começa de verdade a escutar a música.

Nestes últimos anos, as ideias boas tem vindo em outras formas, outros estilos.  Hip hop e suas derivações, eletrônica, etc. Tem vindo de países menos estabelecidos no mercado musical. Quem me faria sair de casa para ir a um show são atrações como Balaké Sissoko, Toumani Diabaté. Tinariwen. Ou mesmo que a novidade venha dos EUA ou do Canadá , vem de músicos tão abertos ao Kraftwerk como á música do Mali, como é o caso do Animal Collective ou Tune-Yards. Algumas bandas mais foda são as que se anteciparam a essa tendência, como é o caso do Talking Heads ou o The Clash nos anos 1980.

Aparentemente a gente passou a uma era em que os modismos centrais serão menos frequentais, pulverizados e mais personalizados. Uma era em que podem florescer várias tendências ao mesmo tempo. E isso se liga de forma ótima com o que vem acontecendo a nível político, de reafirmação de algumas identidades. As buscas hoje são outras.

Há ainda todo o poder do mundo branco, de New York, da Europa, da supremacia econômica, tecnológica.  Mas estamos dentro e fora, lata absoluta, como diria Gil, não estamos mais contidos. Se Milton cantava uma ode idílica a Lennon e McCartney, que jamais iriam saber do pessoal de Minas, hoje as fronteiras estão um bocadinho mais abertas. As trocas tendem a uma maior horizontalidade – não que o processo da hegemonia tenha sido vencido, mas porque é uma tendência mesmo. A tendência é que os processos estejam mais ao alcance de todos. Processo histórico em andamento. MIA fazendo um pop global com influências de funk carioca...

Não escrevo contra nem a favor, muito antes pelo contrário. Vamo simbora. De qualquer modo, discordo de visões maniqueístas sobre fenômenos extremamente complexos e sobre algo extremamente complexo. Do contrário um monte de gente inteligente entra na conversa furada de um saudosista da bossa-nova como Ruy Castro. Enquanto tomarem instrumentos como bodes expiatórios, não me chamem. Quando começarem a discutir toda a complexa cadeia de produção, toda teia de interações e decisões humanas envolvidas nesse processo, aí sim a gente tá chegando a algum lugar.